O presente estudo pretende apreender o conceito de sublime (em diversos autores) e ainda relacioná-lo com algum fazer teatral.
Para tal, depois de uma longa procura de uma obra que pudesse dar margem a isso, o único objeto que pareceu realmente contundente: uma cena com pouquíssima luz tendo em foco uma boca e um falar quase nada inteligível.
Samuel Beckett escreve a peça EU NÂO em 1973, vinte anos depois do já canonizado Esperando Godot (sua primeira peça publicada e que já continha o germe do esvaziamento, da fragmentação, do estranhamento).
A peça é composta por dois personagens: o Ouvinte (cuja participação reduz-se à presença e quatro movimentos de braço, num levantar e abaixar os membros sempre que Boca insiste em não dizer-se em primeira pessoa, esses movimentos diminuem de intensidade a cada repetição até chegar no imperceptível e extinguir-se) e uma boca. Exatamente – não um corpo, não um rosto, uma boca e um falar “... sem fôlego, urgente, febril, rítmico, arquejante, sem excessiva relação com a inteligibilidade”[1].
Beckett ultrapassa a fragmentação chegando à abstração quase total da personagem. Boca se desenha pela fala, se explica (se é que é possível uma explicação em Beckett) dizendo: “o corpo todo como se não existisse...apenas a boca...enlouquecida”[2].
É possível a partir do texto, apreender pouco do sentido do que é dito, a desestruturação da narrativa, imbuída num caráter reticente, possibilita apenas um escasso desenho: a senhora de setenta anos parece ter sido abandonada pelos pais, rejeitada é criada em algum tipo de orfanato, sem qualquer relação de carinho e de toque. Assim, permaneceu em silêncio, quase muda, durante toda a vida até aquele instante em que dispara (como se um gatilho mesmo tivesse sido apertado) a falar ininterruptamente sem compreender ou controlar o inédito impulso:
“...silencio sepulcral... quando de repente... pouco a pouco... ela sentiu... o que?... o zumbido?... sim... silencio sepulcral exceto o zumbido... algo como um zumbido... quando de repente ela sentiu... palavras... (...) palavras estavam vindo... imagine!... uma voz que não reconheceu... a principio... só depois de muito tempo... teve que admitir finalmente... não podia ser outra... a não ser a sua...(...) e agora essa torrente... continua(...)”[3].
Essa inapreensão do sujeito actante, do sujeito passivo de si e em si, aproxima mais e mais a peça Eu não do conceito de sublime através da história: Seja quando Kant afirma que o sublime abala, estremece; seja Lyothard instaurando o sublime como o medo da presença do nada, ou ainda quando Adorno fala do sentimento causado pela experiência de uma natureza caotica. O Sublime é sempre ligado a um sentimento, infinito, absoluto, que não é reunido, que escapa da apreensão. Em Beckett e no sublime, não é possível reunir a totalidade do sentido da obra. Fica-se a frente da cena constrangido pela obra.
Boca esvazia o próprio sentido do sujeito. “Ela” não consegue referir-se a si senão em terceira pessoa:
“...ela já então setuagenária... numa campina... um dia em que ela passeava por uma campina... (...) ele seu consigo no...(o quê?... quem?... não!...ela...”
ela é disforme, ou melhor “a-formal”. A incompletude que sobra de seu auto e, negação da aparência enquanto síntese, unisvaziamento atinge pelo caminho inverso a grandiosidade de estar resumida ao mínimo possível. De estar situada “na justa margem do que é possível, então, no teatro”[4] para usar as palavras do próprio autor.
A disformidade caótica, a abstração nuclear (negação do sujeito atuante) é uma das marcas de um sublime na estética moderna. É a negação da forma pelo impacto da presença, negação da aparência enquanto síntese.
Boca em cena não é um signo de, não indica um significante, não representa a ausência de algo. Boca se apresenta, é a aparição que resta ao espectador e não há, por trás dela nenhum referencial a qualquer coisa.
Com a mutilação física e a desestruturação partida e repartida dessa personagem, Beckett descobre um algo que não poderia aparecer por completo, nessa escassez o sujeito se depara com o absoluto e o impacto alcançado é bem mais intenso que a experiência do belo, por exemplo.
O sublime é tão mais subjetivo que o belo quanto o belo remete muito mais a uma experiência de prazer estético. O sublime não causa prazer, causa estranhamento.
Se o belo é o livre jogo da imaginação, o sublime é o conflito entre as formas.
Na instabilidade do eu como uma das temáticas beckettianas, bem como na situação dramática de suas personagens caracterizada recorrentemente pela escassez ou impossibilidade absoluta de deslocamento do espaço (só para citar dois exemplos) a expressão do fracasso e até o fracasso da própria expressão culmina ao apse na trajetória beckettiana.
Perguntar-se sobre Eu não, seu significado, sua serventia, alcança a resposta única da obra de arte sublime em meu humilde entendimento: Beckett é um fim em si.
Bibliografia:
Beckett, Samuel, Eu não , tradução Rubens Busche, banco de peças da UNIRIO
Cavalcanti, Isabel, Eu que não estou aí onde estou,Rio de Janeiro, 7 Letras, 2006
Burke, Edmund, Uma investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Idéias do Sublime e do Belo. Campinas: Papirus: editora Unicamp, 1993
Lyotard, Jean-François, O inumano.Lisboa: Editorail Estampa, 1989
Kant, Immanuel. Analítica do sublime in A critica da faculdade do juízo.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996
Pavis, Patrice. Dicionário de Teatro.São Paulo: Perspectiva, 2005