sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Eu. Não.. Sublime...

O presente estudo pretende apreender o conceito de sublime (em diversos autores) e ainda relacioná-lo com algum fazer teatral.

      Para tal, depois de uma longa procura de uma obra que pudesse dar margem a isso, o único objeto que pareceu realmente contundente: uma cena com pouquíssima luz tendo em foco uma boca e um falar quase nada inteligível.

Samuel Beckett escreve a peça EU NÂO em 1973, vinte anos depois do já canonizado Esperando Godot (sua primeira peça publicada e que já continha o germe do esvaziamento, da fragmentação, do estranhamento).

 A peça é composta por dois personagens: o Ouvinte (cuja participação reduz-se à presença e quatro movimentos de braço, num levantar e abaixar os membros sempre que Boca insiste em não dizer-se em primeira pessoa, esses movimentos diminuem de intensidade a cada repetição até chegar no imperceptível e extinguir-se) e  uma boca. Exatamente – não um corpo, não um rosto, uma boca e um falar “... sem fôlego, urgente, febril, rítmico, arquejante, sem excessiva relação com a inteligibilidade”[1].

Beckett ultrapassa a fragmentação chegando à abstração quase total da personagem. Boca se desenha pela fala, se explica (se é que é possível uma explicação em Beckett) dizendo: “o corpo todo como se não existisse...apenas a boca...enlouquecida”[2].

É possível a partir do texto, apreender pouco do sentido do que é dito, a desestruturação da narrativa, imbuída num caráter reticente, possibilita apenas um escasso desenho: a senhora de setenta anos parece ter sido abandonada pelos pais, rejeitada é criada em algum tipo de orfanato, sem qualquer relação de carinho e de toque. Assim, permaneceu em silêncio, quase muda, durante toda a vida até aquele instante em que dispara (como se um gatilho mesmo tivesse sido apertado) a falar ininterruptamente sem compreender ou controlar o inédito impulso:

“...silencio sepulcral... quando de repente... pouco a pouco... ela sentiu... o que?... o zumbido?... sim... silencio sepulcral exceto o zumbido... algo como um zumbido... quando de repente ela sentiu... palavras... (...) palavras estavam vindo... imagine!... uma voz que não reconheceu... a principio... só depois de muito tempo... teve que admitir finalmente... não podia ser outra... a não ser a sua...(...) e agora essa torrente... continua(...)”[3].

Essa inapreensão do sujeito actante, do sujeito passivo de si e em si, aproxima mais e mais a peça Eu não do conceito de sublime através da história: Seja quando Kant afirma que o sublime abala, estremece; seja Lyothard instaurando o sublime como o medo da presença do nada, ou ainda quando Adorno fala do sentimento causado pela experiência de uma natureza caotica. O Sublime é sempre ligado a um sentimento, infinito, absoluto, que não é reunido, que escapa da apreensão. Em Beckett e no sublime, não é possível reunir a totalidade do sentido da obra. Fica-se a frente da cena constrangido pela obra.

Boca  esvazia o próprio sentido do sujeito. “Ela” não consegue referir-se a si senão em terceira pessoa:

         ...ela já então setuagenária... numa campina... um dia em que ela passeava por uma campina... (...) ele seu consigo no...(o quê?... quem?... não!...ela...”

ela é disforme, ou melhor “a-formal”. A incompletude que sobra de seu auto e, negação da aparência enquanto síntese, unisvaziamento atinge pelo caminho inverso a grandiosidade de estar resumida ao mínimo possível. De estar situada “na justa margem do que é possível, então, no teatro”[4] para usar as palavras do próprio autor.

A disformidade caótica, a abstração nuclear (negação do sujeito atuante) é uma das marcas de um sublime na estética moderna. É a negação da forma pelo impacto da presença, negação da aparência enquanto síntese.

Boca em cena não é um signo de, não indica um significante, não representa a ausência de algo. Boca se apresenta, é a aparição que resta ao espectador e não há, por trás dela nenhum referencial a qualquer coisa.

Com a mutilação física e a desestruturação partida e repartida dessa personagem, Beckett descobre um algo que não poderia aparecer por completo, nessa escassez o sujeito se depara com o absoluto e o impacto alcançado é bem mais intenso que a experiência do belo, por exemplo.

O sublime é tão mais subjetivo que o belo quanto o belo remete muito mais a uma experiência de prazer estético. O sublime não causa prazer, causa estranhamento.

Se o belo é o livre jogo da imaginação, o sublime é o conflito entre as formas.

Na instabilidade do eu como uma das temáticas beckettianas, bem como na situação dramática de suas personagens caracterizada recorrentemente pela escassez ou impossibilidade absoluta de deslocamento do espaço (só para citar dois exemplos) a expressão do fracasso e até o fracasso da própria expressão culmina ao apse na trajetória beckettiana.

Perguntar-se sobre Eu não, seu significado, sua serventia, alcança a resposta única da obra de arte sublime em meu humilde entendimento: Beckett é um fim em si.













Bibliografia:

Beckett, Samuel, Eu não , tradução Rubens Busche, banco de peças da UNIRIO

Cavalcanti, Isabel, Eu que não estou aí onde estou,Rio de Janeiro, 7 Letras, 2006

Burke, Edmund, Uma investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Idéias do Sublime e do Belo. Campinas: Papirus: editora Unicamp, 1993

Lyotard, Jean-François, O inumano.Lisboa: Editorail Estampa, 1989

Kant, Immanuel. Analítica do sublime in A critica da faculdade do juízo.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996

Pavis, Patrice. Dicionário de Teatro.São Paulo: Perspectiva, 2005



[1] Indicação do autor sobre a maneira de ser proferido pela atriz o texto. Citado em Cavalcanti, 2006 pag 88
[2] Beckett, 1973
[3] idem
[4] citado em Cavalcanti, 2006 pag 30

Sempre gostei muito de teatro...


Em pleno domingo de sol, continuava eu, enfurnada sobre a mesa e os livros; encurralada pelas obrigações acadêmicas. Assim mesmo, sem prazer ou qualquer tipo de empatia foi que me deparei com uma das frases mais intrigantes de minhas descobertas recentes:

       “Sempre gostei muito de teatro e, no entanto, quase já não o freqüento”

       Percebi então uma das marcas registradas de Roland Barthes: ali eu já queria ler o texto, entender o que aconteceu, porque ele teria dito isso no maio de 1965, de quando é datado o ensaio. Barthes me SEDUZIU. A dialética; a tese e antítese da afirmativa mereciam, em mim, uma explicação.

Seguindo o ensaio, descubro que se trata do “ofuscamento brechtiano” que alcançou Barthes cortando nele “o gosto por qualquer teatro imperfeito”[1] e desde então ele deixou de ir ao teatro.

Relata o autor, que a experiência teve caráter tão radical que não tinha mais como diferenciar, em grau, Brecht do resto do teatro. Era uma diferença de natureza. Instaurava-se o brechtismo como uma cultura verdadeira, uma dramaturgia no cruzamento de um pensamento político cm um pensamento “semântico”. Um fazer teatral que não tivesse o caráter político, a estrutura de cirúrgico dos signos e ainda causasse prazer, como teria feito Brecht  para Barthes, não valeria a penas mais ser visto.

            Continuei o passeio pelas paginas de “Escritos de Teatro”, essa compilação feita por Jean-Loup Riviere e parei em “Sete fotos-modelo de Mãe Coragem” (1959) onde o autor explica, à partir do detalhe, o distanciamento de Brecht.

Na segunda apresentação de Mãe Coragem feita em Paris em 1957, Roger Pic fez um ensaio fotográfico de cerca de 100 fotos.

Para Barthes a foto explicita o detalhe; o detalhe a significação, e o teatro de Brecht é um teatro de significação.

A significação, o sentido é o ponto de apoio para o distanciamento de Brecht e conclui: distanciar “...é, para o ator, significar a peça, e não mais a si mesmo na peça”[2].

Fechei o livro tentando encontrar o algo que me faz, ainda, ir ao teatro. Que caminho inverso cria em mim a esperança de ver algo em cena que me arrebate como Barthes foi arrebatado.

Nessa complexidade do contemporâneo, nessa pluralidade de “produtos” que se apertam nas prateleiras do Segundo Caderno.

Talvez seja improvável que algo surja com tamanha grandeza a ponto de saciar minha sede. Mas me mantenho firme, e em busca. Até porque sempre gostei muito de teatro, mesmo sem ver coisas realmente boas com freqüência.



Bibliografia:

Barthes, Roland: Escritos sobre teatro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2007



[1] Barthes, Roland: Escritos Sobre teatro, pág 4
[2] Idem pág 241







[1] Citado em Isabel Cavalcanti, 2006 pag 44

[1] Cavalcanti, 2006, pág 60



[1] Citado em Isabel Cavalcanti, 2006 pag 44
[2] Cavalcanti, 2006, pág 60

Nepal

 Tive, no mês de maio deste ano, a oportunidade de ir a Ouro Preto onde acontecia a Semana de Artes – festival organizado pela Multicultural empresa Junior de Artes cênicas do Departamento de Artes da Universidade Federal de Ouro Preto UFOP.

            A semana já vem, há alguns anos, levando à comunidade os trabalhos dos alunos através do MOMU (festival de monólogos e musica original) e do Mesquete (mostra de esquetes). Neste ano, a organização deu um grande passo criando a concomitante Miscelânea, espaço para a troca de produções entre a universidades e não acadêmicos.

Pois no curto tempo em que estive lá o espetáculo que realmente me chamou a atenção era, coincidentemente  composto por dois atores/ alunos da escola d teatro da UNIRIO.

O grupo “É só esse espetáculo” apresentou o texto Nepal do autor Péricles Anarcos.

Trata dos dois únicos sobreviventes ao fim do mundo após a vinda do “grande Potraça” que voltará em dois dias para a finalização da obra.

Então temos em cena um peregrino em busca de água e um ermitão sentado em lótus sobre uma pedra alta, afirmando ser o dono da única nascente que resistiu. Temos dois genéricos de Vladmir e Estragon e o absurdo beckettiano presente, mesmo que incompleto.

Péricles alcança no texto a fragmentação do sentido nos dando o onde, o quê e o quando, tudo muito bem descrito e ao mesmo tempo tão ausente.

Em cena vê-se apenas aqueles dois seres(com suas maquiagens carregadas) e a pedra. O alto do Nepal é o fim do mundo.

Assim como estão Clov e Hamm no interior de uma casa em fim de partida, estão também em lugar algum, composto pela ausência de elementos cênicos. Gilles Pétel descreve em “Das Palavras e das Lágrimas” os lugares beckettianos:

            “eles possuem todos um coeficiente de realidade frágil. É portanto a dialética imaginária do aqui e do alhures que Beckett destruiu, colocando suas personagens em lugares inusitáveis, porque indefinidos, e dos quais não se pode portanto escapar porque não há nenhum outro”[1]

Péricles não inventa nada. Os diálogos rápidos de Vladmir e Estragon: “as personagens de Beckett sã, em grande parte, falantes compulsivos. Falam de si para si mesmas”[2]estão presentes em Nepal. Tanto quanto a alternância de poder entre as personagens.

Não há mutilação física dos mesmos. A contra-ponto o resto do mundo foi dizimado (salvo as baratas que a certa altura da peça sabe-se que se organizam para partir em busca da tomada do poder)

Assistir ao absurdo nessa montagem foi, sem sombra de duvida, o ponto alto do festival. E o que me faz constatar quão contundente é, ainda hoje (e talvez cada dia mais) embebermo-nos no absurdo beckettiano.

O homem contemporâneo é composto dessa fragmentação absurda, apitando e avisando mais um download completo. Falando de si para si virtualmente onde o interlocutor é tão ausente quanto a comunicação é efetiva.

Que venham os filhos de Beckett pois só mesmo o absurdo alcança a verossimilhança em representar a vida.





Bibliografia:



Cavalcanti, Isabel: Eu que não estou aí onde estou; Rio de Janeiro, 7Letras, 2006

















[1] Citado em Isabel Cavalcanti, 2006 pag 44

[1] Cavalcanti, 2006, pág 60



[1] Citado em Isabel Cavalcanti, 2006 pag 44
[2] Cavalcanti, 2006, pág 60

É que acontece em mim coisas de cor



Era sábado, chovia um pouco e eu inspirada a ficar em casa vendo um bom filme tomando um belo vinho tinto.
Antes que a noite caísse fui intimada à assistir ao trabalho de um amigo , muito a contra-gosto recebi o cartão de divulgação da peça: “Na casa de Van Gogh - teatro instalação- acesso interno: escada com 17 degraus – tudo o que eu não queria para aquela noite!
Só a definição TEATRO INSTALAÇÃO já instaurava um medo e a repulsa. E ainda 17 degraus! Vou ter que ficar seguindo a cena!-pensei com a preguiça que o tempo criava. Não tive saída e fui, como quem vai a cruz, mas fui.
O espetáculo está em cartaz na “escolinha de Arte do Brasil”, um espaço que não é um teatro, é mesmo uma casa antiga de cômodos pequenos.
Acontece que o diretor Marco Pólo baseou-se em “Cartas a Theo” de Van Gogh para criar o espetáculo cuja a plástica coerente dialoga em harmonia com os fragmentos que formam o texto.
Cada cômodo da casa ficou sendo como uma fase da produção do pintor e, em cada uma delas um ator vivia um Van Gogh e transitavam pelo espaço coexistindo e ecoando as vozes
uns dos outros.
No primeiro cômodo, o quarto de Van Gogh, depois fase azul, vermelha e os girassóis. Os atores com figurinos distintos, maquiagens carregadas e um suspiro, uma falta de ar agonizante comum a todos eles.
Lembrei de uma conversa que tive certa vez com uma psiquiatra que tentava me fazer entender como funciona a mente de um esquizofrênico: - Imagine uma parede feita de várias gavetinhas – disse ela didaticamente – cada uma delas guarda um sentimento, uma reação, uma lembrança, uma ligação com o outro. O esquizofrênico não tem uma linha emocional. Hoje você pode ser a gaveta do carinho, amanha da tortura.
Um tanto dramático no sentido pejorativo do termo, mas era assim mesmo que eu entendi cada cômodo e cada fase do espetáculo. A intimista montagem, o espaço apertado e a locomoção desagradável concordavam com a falta de ar presente em cena.
Ao fim do espetáculo, feliz por ter ido, peguei de novo o cartão de divulgação e me certifiquei do que já imaginava. Não havia no verso nenhum slogan de patrocinador. A peça foi feita “na garra”. Entendi que é possível fazer coisas muito complexas com pouquíssimos recursos posto que antes de me surpreender com o espetáculo acreditava ser, somente pela grandiosidade estrutural, a forma de fazer dialogar as artes coerentemente.